BASTOS, Andrei. A inclusão de crianças com deficiência na educação infantil. In: BASTOS, Andrei. O educador como propositor e executor da política de educação infantil. UNESCO, 2011.
Com o ano letivo para iniciar, Maria Clara achou que já era hora de começar a pensar nas atividades que desenvolveria com suas crianças. Mal havia sentado e foi atraída pela algazarra de um grupinho de meninos e meninas, na pracinha defronte de sua janela. “Que coincidência”, pensou, enquanto se lembrava da novidade desafiadora que a Esperava logo mais: pela primeira vez, teria em sua turma uma criança cega e outra com paralisia cerebral.
Do outro lado da rua, a criança com a venda nos olhos girava a cabeça para um lado e outro, seguindo os gritos dos companheiros, e tateava desordenadamente o espaço com os braços estabanados, tentando agarrar um deles. Foi o que bastou para que a professora se pusesse a imaginar como seria o dia a dia das pessoas que não enxergam. “Taí! Acho que será uma boa ideia promover uma troca de vivências entre as crianças, para que comecem a se integrar”.
Atenta à naturalidade do comportamento infantil diante das trapalhadas da “cabra-cega”, ela também concluiu que é muito mais fácil e efetivo incluir socialmente pessoas cegas, cadeirantes, surdas, usuárias de muletas, com síndrome de Down ou paralisia cerebral, na primeira infância. Isso porque, nessa fase da vida, ainda não se formaram os preconceitos, e não se construiu a discriminação.
Enquanto as crianças têm muita facilidade para aceitar o diferente, isso não acontece, mesmo hoje, com os adultos, seja na sociedade em geral, seja entre os educadores, visto que a maioria das pessoas tem uma herança cultural carregada de preconceitos. Buscando ser honesta consigo, MariaClara tinha consciência de que se incluía nesse grupo. E mais: para superar os seus preconceitos e conseguir enfrentar melhor o novo e duplo desafio de incluir as duas novas crianças em sua turma, ela precisaria esforçar-se para ficar mais bem informada e preparada.
*Busca de conhecimento*
Feliz com essa constatação, Maria Clara pôs-se a anotar ideias de jogos e brincadeiras que simulassem essas condições e pudessem promover a interação entre todas as crianças. Logo se deu conta de que a situação que julgara, de início, como um desafio também poderia ser um fator de enriquecimento da atividade pedagógica e das próprias existências dela e da garotada, é claro.
Quanto mais se quer ensinar, mais se precisa aprender, e Maria Clara decidiu conhecer a vida das pessoas com atributos comumente chamados de deficiências. Pessoas que vêm tornando-se mais visíveis na sociedade nos últimos tempos, graças às suas conquistas de emancipação social e política.
A professora ponderou: “Beethoven era surdo, Einstein tinha síndrome de Asperger, Stevie Wonder é cego, e o físico Stephen Hawking possui esclerose lateral amiotrófica. Os quatro eram, ou são, pessoas com deficiências e também verdadeiros gênios. Mas e as pessoas comuns, que não se distinguem por nenhuma genialidade? Como ficam? Foi refletindo sobre isso que ela chegou à conclusão de que uma maior Participação de pessoas com deficiências no processo social, e não apenas a de exceções brilhantes, como as que lembrara, é resultado de uma luta política iniciada há décadas, que já foi equiparada à luta por direitos do negro e da mulher.
A leitura do artigo do jornalista norte-americano deixou Maria Clara intrigada com a quantidade de nomes estrangeiros nessa história, e a professora foi atrás de informações sobre esse movimento político no Brasil. Qual não foi sua surpresa, ao descobrir que o patrimônio jurídico brasileiro relativo à inclusão social das pessoas com deficiência é considerado um dos melhores do mundo, em oposição à realidade que nos cerca.
A Emenda Constitucional nº 12, por exemplo, abriu um ciclo de avanços legais que evoluiu até a promulgação da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência: enquanto a primeira reconheceu, em 1978, a existência civil das pessoas com deficiência, a internalização da Convenção ofereceu a última palavra em torno das conquistas e dos entendimentos das questões pertinentes e encerrou seus trâmites legais em 25 de agosto de 2009, com o Decreto nº 6.949 da Presidência da República.
No que diz respeito às crianças com deficiência, a Convenção da ONU, em seu artigo 7º, diz:
1. Os Estados-parte tomarão todas as medidas necessárias para assegurar às crianças com deficiência o pleno exercício de todos os direitos humanos e as liberdades fundamentais, em igualdade de oportunidades com as demais crianças.
2. Em todas as ações relativas às crianças com deficiência, o superior interesse da criança receberá consideração primordial.
3. Os Estados-parte assegurarão que as crianças com deficiência tenham o direito de expressar livremente sua opinião sobre todos os assuntos que lhes disserem respeito, tenham a sua opinião devidamente valorizada de acordo com sua idade e maturidade, em igualdade de oportunidades com as demais crianças, e recebam atendimento adequado à sua deficiência e idade, para que possam exercer tal direito.
Após essa e outras leituras, Maria Clara convenceu-se de que a legislação é ampla e minuciosa. Mas isso não basta! Na realidade, falta muito a ser feito, desde a melhoria de acesso aos transportes públicos, aos prédios, às calçadas, às ruas e aos meios de comunicação até um maior investimento na formação dos educadores, para que sejam capazes de implementar uma verdadeira educação inclusiva.
Definitivamente, a teoria ainda está distante da realidade, e nossa professora começou a perceber, realmente, o tamanho e a importância da tarefa que teria pela frente. Isso porque ela decidiu que gostaria de fazer mais pelas pessoas com deficiência do que apenas dedicar-se correta e conscientemente às suas duas novas crianças. “Posso buscar contato e colaborar com as pessoas com deficiência que lutam para transformar a sociedade e serem nela reconhecidas”.
“Nada sobre nós sem nós”, dizem as pessoas com deficiência que lutam por seu reconhecimento social. Elas querem deixar claro que a vontade política que falta, que é fundamental para dar efetividade às leis, só existirá com a participação delas nas ações do Estado que lhes digam respeito.
*Navegando na internet*
Muito do que leu e conheceu até aqui, a professora encontrou na internet, o que é compreensível. Além de a rede mundial de computadores oferecer um grande leque de informações, os seus recursos tecnológicos servem muito bem à superação das restrições sensoriais, físicas ou intelectuais de pessoas cegas, surdas, tetraplégicas, paralisadas cerebrais ou com síndrome de Down, entre outras deficiências.
Foi na página do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) na internet, por exemplo, que ela ficou conhecendo os números relativos ao segmento e se espantou com o fato de que 14,5% da nossa população tem algum tipo de deficiência, o que, no Censo 2000, somava 25 milhões de brasileiros, aproximadamente. Ora, se considerarmos que, pelo menos, mais uma pessoa estaria diretamente ligada a cada um desses brasileiros, já seriam 50 milhões de envolvidos na questão, quando a população era de 170 milhões. Como em 2010 o país já superava os 190 milhões de habitantes, esse número já deve ser bem maior.
Além da página do IBGE, Maria Clara deu-se conta de que existem muitas outras. Elas trazem de reivindicações desse segmento a dados sobre a legislação e ações do governo e da sociedade civil voltadas a eles, além de notícias sobre os recursos tecnológicos e as orientações para capacitação dos profissionais que trabalham com essas pessoas.
“Mas onde estão as pessoas com deficiência, cadê essa gente toda?”, questionava-se a professora, enquanto pesquisava e se surpreendia. “Se os números são tão grandes, por que entraram apenas duas crianças com deficiência na escola? E por que vemos tão poucas pessoas com deficiência nas ruas das cidades e menos ainda nos bairros e nas regiões mais pobres?”
*Viajando pelo interior do país*
As respostas a essas perguntas são facilmente encontradas. O difícil, certamente, é aceitá-las. Acontece que a questão da deficiência é bastante relacionada à pobreza, e entre as populações menos favorecidas está o maior contingente de adultos e crianças com deficiência. Tanto é assim, que o texto da Convenção da ONU reflete esta realidade e procura influir para melhorar as condições de vida dessas parcelas da população mundial.
Nos centros urbanos desenvolvidos, são poucas as crianças e os adultos com deficiência que exercem o direito fundamental de ir e vir, por conta da falta de acessibilidade nos transportes, nos prédios e nas ruas. E essa reclusão é ainda maior nos rincões esquecidos do país. Se, mesmo nas cidades que possuem um número maior de pessoas instruídas e esclarecidas, o preconceito e a discriminação são barreiras gigantescas a serem superadas, como pensarão os habitantes de vilarejos com ruas de terra e sem escolas?
Nessas localidades, em especial, a maioria dos adultos e crianças com deficiência vive escondida e aprisionada em quartinhos dos fundos. Isso, quando não é deixada nas ruas ou esquecida em abrigos que são, na verdade, depósitos de gente. Abrigos que, normalmente, misturam deficiências com doenças e não têm condições mínimas de estimular o desenvolvimento deualquer criança com deficiência, por menor que seja seu comprometimento motor ou intelectual.
Para mudar esse quadro de abandono e equívocos, é preciso haver decisão e vontade de todos, especialmente dos educadores que se dedicam à educação inclusiva em diferentes instituições escolares. E a informação, reconhece nossa professora, é o primeiro passo para orientar e fortalecer o engajamento do conjunto da sociedade.
*Pessoas com deficiência*
Entre as muitas informações colhidas por Maria Clara, destaca-se a que diz respeito às mudanças na nomenclatura adotada pelo segmento que, obviamente, refletem entendimentos e conceituações que vamos acumulando ao longo do tempo. Foi assim que a antiga expressão “portadores de necessidades especiais” deu lugar à atual “pessoas com deficiência”. A importância de usarmos a palavra correta é clara. Afinal, da mesma forma que as leis refletem a conquista de direitos, as palavras transmitem percepções e discernimento.
A primeira expressão a cair em desuso foi “necessidades especiais”, pois entendeu-se que ninguém seria “especial” por ter uma deficiência que, na verdade, seria um atributo, como ser alto, baixo, magro ou gordo. Assim, quaisquer necessidades seriam específicas a cada deficiência. Além disso, como pode um ser humano “portar” uma necessidade? Essa expressão também deixou de ser usada, vigorando, atualmente, as expressões “pessoas com deficiência” e “crianças com deficiência”.
Aparentemente pouco importante, toda essa discussão tem grande valia no processo de conscientização da sociedade e na eliminação das barreiras de preconceito e discriminação.
No fundo, se considerarmos que cada ser humano tem um potencial próprio de realização, a deficiência deixa de existir, pois é um conceito relativo e discriminatório. O correto seria dizermos que a pessoa, adulto ou criança, é cega, surda, amputada, entre outros, tendo o direito de realizar plenamente seu potencial
Vamos chegar lá! Enquanto isso não acontece, Maria Clara conclui que precisa aprender mais para poder oferecer à criança cega e à criança com paralisia cerebral o mesmo que oferece às demais. Um primeiro passo é avançar no conhecimento das características de cada uma e saber que elas estão entre os agrupamentos de deficiências sensoriais (cegueira, surdez), físicas (cadeirantes e usuários de muletas) e intelectuais (síndrome de Down, paralisia cerebral). A partir daí, é possível identificar suas necessidades específicas e abrir caminho para a aplicação de todos os recursos pedagógicos disponíveis.
*Educação inclusiva*
Embora toda a educação deva ser inclusiva, existem muitas divergências em torno de como deve ser a aplicação da chamada educação inclusiva. Essa concepção educacional começou a ser aplicada, nos Estados Unidos (EUA), com a implementação de uma lei de 1975 e foi consolidada na Declaração de Salamanca, em 1994. No entanto, ainda hoje, nas primeiras décadas do século XXI, muita gente continua acreditando que somente nas instituições exclusivas as crianças com deficiência podem se desenvolver. Contudo, há também quem defenda a ideia de que as crianças devem ser colocadas todas juntas na mesma sala de aula de ensino regular. Enquanto alguns acreditam
que as crianças com deficiência precisam ter disponíveis apenas os acessórios específicos às suas necessidades, como material em braille ou mobiliário acessível a cadeirantes, sem a necessidade de nenhum outro atendimento didático extra, outros nesse grupo consideram necessário um suporte adicional, também específico a cada característica apresentada, para que ocorram, de fato, a inclusão e a igualdade de oportunidades.
Para esses últimos, se uma criança com paralisia cerebral, por exemplo, é lenta na escrita, devido a sequelas nos membros superiores, mas tem capacidade intelectual preservada, seja em que percentual for, ela deve frequentar as salas de aula de ensino regular. Além disso, precisa receber atendimento adicional por meio de fisioterapia, recursos tecnológicos ou outro fator de estímulo que a ajude a se desenvolver na escrita. O mesmo acontecendo com crianças cegas, surdas, com síndrome de Down etc., em todas as situações específicas a cada uma. Tal atendimento extra, defende ainda esse grupo, deve-se dar em salas devidamente equipadas e no contraturno.
Assim, uma mesma escola deveria oferecer a educação inclusiva – compreendida no sentido mais amplo da diversidade humana e da democracia – e a chamada educação especial, que sempre foi entendida como um sistema educacional separado do regular, exclusivo para crianças com deficiência.
Diante de opiniões e propostas tão diversas, Maria Clara recorreu novamente à internet, mais especificamente ao site do Ministério da Educação (MEC). Foi um mergulho e tanto, mas valeu a pena! Com base nessas pesquisas, ela chegou à conclusão de que todas as crianças devem receber atendimento equivalente e que lhes possibilite igualdade de oportunidades. Esse deve ser o único objetivo dos educadores democráticos e conscientes da diversidade humana, pois a educação exclusiva, em vez de possibilitar avanços, pode ter efeito contrário, criando guetos onde se pensava haver soluções.
“As pessoas com deficiência são parte integrante desse nosso mundo tão diverso. Assim, tanto faz uma criança ser branca, negra, japonesa, brasileira, gorda, magra, com deficiência ou não. Todas são iguais perante as leis do coração, da razão e, muito especialmente, perante as leis do direito à educação.”
Partindo dessa compreensão, nossa professora começa a pensar sobre quais políticas públicas ou ações de grupos organizados da sociedade civil poderão efetivamente despertar o conjunto da população: “Precisamos encontrar maneiras de sensibilizar mais e mais pessoas para a responsabilidade que temos na inclusão plena da diversidade humana, em especial das pessoas com deficiência, começando já na educação infantil”.
Lembrando-se, novamente, da brincadeira de cabra-cega, ela põe-se a imaginar campanhas de sensibilização que divulguem o potencial existencial e de realização das diferentes deficiências, que possam mobilizar a todos em torno do slogan: “ponha-se no meu lugar e veja como você também é capaz”.
Fonte: Unicamp
Com o ano letivo para iniciar, Maria Clara achou que já era hora de começar a pensar nas atividades que desenvolveria com suas crianças. Mal havia sentado e foi atraída pela algazarra de um grupinho de meninos e meninas, na pracinha defronte de sua janela. “Que coincidência”, pensou, enquanto se lembrava da novidade desafiadora que a Esperava logo mais: pela primeira vez, teria em sua turma uma criança cega e outra com paralisia cerebral.
Do outro lado da rua, a criança com a venda nos olhos girava a cabeça para um lado e outro, seguindo os gritos dos companheiros, e tateava desordenadamente o espaço com os braços estabanados, tentando agarrar um deles. Foi o que bastou para que a professora se pusesse a imaginar como seria o dia a dia das pessoas que não enxergam. “Taí! Acho que será uma boa ideia promover uma troca de vivências entre as crianças, para que comecem a se integrar”.
Atenta à naturalidade do comportamento infantil diante das trapalhadas da “cabra-cega”, ela também concluiu que é muito mais fácil e efetivo incluir socialmente pessoas cegas, cadeirantes, surdas, usuárias de muletas, com síndrome de Down ou paralisia cerebral, na primeira infância. Isso porque, nessa fase da vida, ainda não se formaram os preconceitos, e não se construiu a discriminação.
Enquanto as crianças têm muita facilidade para aceitar o diferente, isso não acontece, mesmo hoje, com os adultos, seja na sociedade em geral, seja entre os educadores, visto que a maioria das pessoas tem uma herança cultural carregada de preconceitos. Buscando ser honesta consigo, MariaClara tinha consciência de que se incluía nesse grupo. E mais: para superar os seus preconceitos e conseguir enfrentar melhor o novo e duplo desafio de incluir as duas novas crianças em sua turma, ela precisaria esforçar-se para ficar mais bem informada e preparada.
*Busca de conhecimento*
Feliz com essa constatação, Maria Clara pôs-se a anotar ideias de jogos e brincadeiras que simulassem essas condições e pudessem promover a interação entre todas as crianças. Logo se deu conta de que a situação que julgara, de início, como um desafio também poderia ser um fator de enriquecimento da atividade pedagógica e das próprias existências dela e da garotada, é claro.
Quanto mais se quer ensinar, mais se precisa aprender, e Maria Clara decidiu conhecer a vida das pessoas com atributos comumente chamados de deficiências. Pessoas que vêm tornando-se mais visíveis na sociedade nos últimos tempos, graças às suas conquistas de emancipação social e política.
A professora ponderou: “Beethoven era surdo, Einstein tinha síndrome de Asperger, Stevie Wonder é cego, e o físico Stephen Hawking possui esclerose lateral amiotrófica. Os quatro eram, ou são, pessoas com deficiências e também verdadeiros gênios. Mas e as pessoas comuns, que não se distinguem por nenhuma genialidade? Como ficam? Foi refletindo sobre isso que ela chegou à conclusão de que uma maior Participação de pessoas com deficiências no processo social, e não apenas a de exceções brilhantes, como as que lembrara, é resultado de uma luta política iniciada há décadas, que já foi equiparada à luta por direitos do negro e da mulher.
A leitura do artigo do jornalista norte-americano deixou Maria Clara intrigada com a quantidade de nomes estrangeiros nessa história, e a professora foi atrás de informações sobre esse movimento político no Brasil. Qual não foi sua surpresa, ao descobrir que o patrimônio jurídico brasileiro relativo à inclusão social das pessoas com deficiência é considerado um dos melhores do mundo, em oposição à realidade que nos cerca.
A Emenda Constitucional nº 12, por exemplo, abriu um ciclo de avanços legais que evoluiu até a promulgação da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência: enquanto a primeira reconheceu, em 1978, a existência civil das pessoas com deficiência, a internalização da Convenção ofereceu a última palavra em torno das conquistas e dos entendimentos das questões pertinentes e encerrou seus trâmites legais em 25 de agosto de 2009, com o Decreto nº 6.949 da Presidência da República.
No que diz respeito às crianças com deficiência, a Convenção da ONU, em seu artigo 7º, diz:
1. Os Estados-parte tomarão todas as medidas necessárias para assegurar às crianças com deficiência o pleno exercício de todos os direitos humanos e as liberdades fundamentais, em igualdade de oportunidades com as demais crianças.
2. Em todas as ações relativas às crianças com deficiência, o superior interesse da criança receberá consideração primordial.
3. Os Estados-parte assegurarão que as crianças com deficiência tenham o direito de expressar livremente sua opinião sobre todos os assuntos que lhes disserem respeito, tenham a sua opinião devidamente valorizada de acordo com sua idade e maturidade, em igualdade de oportunidades com as demais crianças, e recebam atendimento adequado à sua deficiência e idade, para que possam exercer tal direito.
Após essa e outras leituras, Maria Clara convenceu-se de que a legislação é ampla e minuciosa. Mas isso não basta! Na realidade, falta muito a ser feito, desde a melhoria de acesso aos transportes públicos, aos prédios, às calçadas, às ruas e aos meios de comunicação até um maior investimento na formação dos educadores, para que sejam capazes de implementar uma verdadeira educação inclusiva.
Definitivamente, a teoria ainda está distante da realidade, e nossa professora começou a perceber, realmente, o tamanho e a importância da tarefa que teria pela frente. Isso porque ela decidiu que gostaria de fazer mais pelas pessoas com deficiência do que apenas dedicar-se correta e conscientemente às suas duas novas crianças. “Posso buscar contato e colaborar com as pessoas com deficiência que lutam para transformar a sociedade e serem nela reconhecidas”.
“Nada sobre nós sem nós”, dizem as pessoas com deficiência que lutam por seu reconhecimento social. Elas querem deixar claro que a vontade política que falta, que é fundamental para dar efetividade às leis, só existirá com a participação delas nas ações do Estado que lhes digam respeito.
*Navegando na internet*
Muito do que leu e conheceu até aqui, a professora encontrou na internet, o que é compreensível. Além de a rede mundial de computadores oferecer um grande leque de informações, os seus recursos tecnológicos servem muito bem à superação das restrições sensoriais, físicas ou intelectuais de pessoas cegas, surdas, tetraplégicas, paralisadas cerebrais ou com síndrome de Down, entre outras deficiências.
Foi na página do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) na internet, por exemplo, que ela ficou conhecendo os números relativos ao segmento e se espantou com o fato de que 14,5% da nossa população tem algum tipo de deficiência, o que, no Censo 2000, somava 25 milhões de brasileiros, aproximadamente. Ora, se considerarmos que, pelo menos, mais uma pessoa estaria diretamente ligada a cada um desses brasileiros, já seriam 50 milhões de envolvidos na questão, quando a população era de 170 milhões. Como em 2010 o país já superava os 190 milhões de habitantes, esse número já deve ser bem maior.
Além da página do IBGE, Maria Clara deu-se conta de que existem muitas outras. Elas trazem de reivindicações desse segmento a dados sobre a legislação e ações do governo e da sociedade civil voltadas a eles, além de notícias sobre os recursos tecnológicos e as orientações para capacitação dos profissionais que trabalham com essas pessoas.
“Mas onde estão as pessoas com deficiência, cadê essa gente toda?”, questionava-se a professora, enquanto pesquisava e se surpreendia. “Se os números são tão grandes, por que entraram apenas duas crianças com deficiência na escola? E por que vemos tão poucas pessoas com deficiência nas ruas das cidades e menos ainda nos bairros e nas regiões mais pobres?”
*Viajando pelo interior do país*
As respostas a essas perguntas são facilmente encontradas. O difícil, certamente, é aceitá-las. Acontece que a questão da deficiência é bastante relacionada à pobreza, e entre as populações menos favorecidas está o maior contingente de adultos e crianças com deficiência. Tanto é assim, que o texto da Convenção da ONU reflete esta realidade e procura influir para melhorar as condições de vida dessas parcelas da população mundial.
Nos centros urbanos desenvolvidos, são poucas as crianças e os adultos com deficiência que exercem o direito fundamental de ir e vir, por conta da falta de acessibilidade nos transportes, nos prédios e nas ruas. E essa reclusão é ainda maior nos rincões esquecidos do país. Se, mesmo nas cidades que possuem um número maior de pessoas instruídas e esclarecidas, o preconceito e a discriminação são barreiras gigantescas a serem superadas, como pensarão os habitantes de vilarejos com ruas de terra e sem escolas?
Nessas localidades, em especial, a maioria dos adultos e crianças com deficiência vive escondida e aprisionada em quartinhos dos fundos. Isso, quando não é deixada nas ruas ou esquecida em abrigos que são, na verdade, depósitos de gente. Abrigos que, normalmente, misturam deficiências com doenças e não têm condições mínimas de estimular o desenvolvimento deualquer criança com deficiência, por menor que seja seu comprometimento motor ou intelectual.
Para mudar esse quadro de abandono e equívocos, é preciso haver decisão e vontade de todos, especialmente dos educadores que se dedicam à educação inclusiva em diferentes instituições escolares. E a informação, reconhece nossa professora, é o primeiro passo para orientar e fortalecer o engajamento do conjunto da sociedade.
*Pessoas com deficiência*
Entre as muitas informações colhidas por Maria Clara, destaca-se a que diz respeito às mudanças na nomenclatura adotada pelo segmento que, obviamente, refletem entendimentos e conceituações que vamos acumulando ao longo do tempo. Foi assim que a antiga expressão “portadores de necessidades especiais” deu lugar à atual “pessoas com deficiência”. A importância de usarmos a palavra correta é clara. Afinal, da mesma forma que as leis refletem a conquista de direitos, as palavras transmitem percepções e discernimento.
A primeira expressão a cair em desuso foi “necessidades especiais”, pois entendeu-se que ninguém seria “especial” por ter uma deficiência que, na verdade, seria um atributo, como ser alto, baixo, magro ou gordo. Assim, quaisquer necessidades seriam específicas a cada deficiência. Além disso, como pode um ser humano “portar” uma necessidade? Essa expressão também deixou de ser usada, vigorando, atualmente, as expressões “pessoas com deficiência” e “crianças com deficiência”.
Aparentemente pouco importante, toda essa discussão tem grande valia no processo de conscientização da sociedade e na eliminação das barreiras de preconceito e discriminação.
No fundo, se considerarmos que cada ser humano tem um potencial próprio de realização, a deficiência deixa de existir, pois é um conceito relativo e discriminatório. O correto seria dizermos que a pessoa, adulto ou criança, é cega, surda, amputada, entre outros, tendo o direito de realizar plenamente seu potencial
Vamos chegar lá! Enquanto isso não acontece, Maria Clara conclui que precisa aprender mais para poder oferecer à criança cega e à criança com paralisia cerebral o mesmo que oferece às demais. Um primeiro passo é avançar no conhecimento das características de cada uma e saber que elas estão entre os agrupamentos de deficiências sensoriais (cegueira, surdez), físicas (cadeirantes e usuários de muletas) e intelectuais (síndrome de Down, paralisia cerebral). A partir daí, é possível identificar suas necessidades específicas e abrir caminho para a aplicação de todos os recursos pedagógicos disponíveis.
*Educação inclusiva*
Embora toda a educação deva ser inclusiva, existem muitas divergências em torno de como deve ser a aplicação da chamada educação inclusiva. Essa concepção educacional começou a ser aplicada, nos Estados Unidos (EUA), com a implementação de uma lei de 1975 e foi consolidada na Declaração de Salamanca, em 1994. No entanto, ainda hoje, nas primeiras décadas do século XXI, muita gente continua acreditando que somente nas instituições exclusivas as crianças com deficiência podem se desenvolver. Contudo, há também quem defenda a ideia de que as crianças devem ser colocadas todas juntas na mesma sala de aula de ensino regular. Enquanto alguns acreditam
que as crianças com deficiência precisam ter disponíveis apenas os acessórios específicos às suas necessidades, como material em braille ou mobiliário acessível a cadeirantes, sem a necessidade de nenhum outro atendimento didático extra, outros nesse grupo consideram necessário um suporte adicional, também específico a cada característica apresentada, para que ocorram, de fato, a inclusão e a igualdade de oportunidades.
Para esses últimos, se uma criança com paralisia cerebral, por exemplo, é lenta na escrita, devido a sequelas nos membros superiores, mas tem capacidade intelectual preservada, seja em que percentual for, ela deve frequentar as salas de aula de ensino regular. Além disso, precisa receber atendimento adicional por meio de fisioterapia, recursos tecnológicos ou outro fator de estímulo que a ajude a se desenvolver na escrita. O mesmo acontecendo com crianças cegas, surdas, com síndrome de Down etc., em todas as situações específicas a cada uma. Tal atendimento extra, defende ainda esse grupo, deve-se dar em salas devidamente equipadas e no contraturno.
Assim, uma mesma escola deveria oferecer a educação inclusiva – compreendida no sentido mais amplo da diversidade humana e da democracia – e a chamada educação especial, que sempre foi entendida como um sistema educacional separado do regular, exclusivo para crianças com deficiência.
Diante de opiniões e propostas tão diversas, Maria Clara recorreu novamente à internet, mais especificamente ao site do Ministério da Educação (MEC). Foi um mergulho e tanto, mas valeu a pena! Com base nessas pesquisas, ela chegou à conclusão de que todas as crianças devem receber atendimento equivalente e que lhes possibilite igualdade de oportunidades. Esse deve ser o único objetivo dos educadores democráticos e conscientes da diversidade humana, pois a educação exclusiva, em vez de possibilitar avanços, pode ter efeito contrário, criando guetos onde se pensava haver soluções.
“As pessoas com deficiência são parte integrante desse nosso mundo tão diverso. Assim, tanto faz uma criança ser branca, negra, japonesa, brasileira, gorda, magra, com deficiência ou não. Todas são iguais perante as leis do coração, da razão e, muito especialmente, perante as leis do direito à educação.”
Partindo dessa compreensão, nossa professora começa a pensar sobre quais políticas públicas ou ações de grupos organizados da sociedade civil poderão efetivamente despertar o conjunto da população: “Precisamos encontrar maneiras de sensibilizar mais e mais pessoas para a responsabilidade que temos na inclusão plena da diversidade humana, em especial das pessoas com deficiência, começando já na educação infantil”.
Lembrando-se, novamente, da brincadeira de cabra-cega, ela põe-se a imaginar campanhas de sensibilização que divulguem o potencial existencial e de realização das diferentes deficiências, que possam mobilizar a todos em torno do slogan: “ponha-se no meu lugar e veja como você também é capaz”.
Fonte: Unicamp
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